Pantera de quarteirão

Só não gosta de gato quem nunca conviveu com um. Essa é minha teoria, e vou defende-la até o fim. Se existe um documentário inteiro da Netflix (que – infelizmente – não está me pagando para fazer essa propaganda) defendendo que a Terra é plana, então acredito, veementemente, que posso convencer alguém que ter um gato é uma experiência extraordinária, em seu conceito mais “diceonarístico”: algo fora do comum.

Os felinos estiveram presente na minha vida desde, bem, sempre. Não tenho nenhuma lembrança, por mais longínqua que seja, de um dia sem gato. Com esse histórico em mente, meu primeiro grito de independência ao sair da casa dos meus pais foi quase clichê: adotei um gato. Ou melhor, uma gata. Tão pequena que cabia na palma da mão, havia sido achada numa lata de lixo. Meu coração apertou e os olhos verdes me conquistaram. Minha mãe insistia que eram amarelos, “coisa de gato ruim”. Fiz ouvido de mercador e levei a frajolinha pra casa. Com o bigode maior que o próprio corpo, achei logo que tinha cara de idosa: Clotilde, nome da minha tataravó (já estava distante suficiente pra ninguém da família se ofender).

Clô se adaptou perfeitamente bem. Tão bem, que logo levou seus olhos amarelos (sim, o dia chegou em que tive que admitir que o verde era fruto da minha imaginação) para passear pela savana do quarteirão. Como morava em uma cobertura, ela aprendeu rapidamente como chegar no telhado. E do telhado, pra outros prédios. E, finalmente, para casa de outras pessoas, mas são historias para outro texto.

Em suas andanças noturnas, descobriu em si mesma, uma caçadora nata. E eu descobri nela, uma pantera miniatura. Todas as noites, de forma ritualística, ela pulava no telhado e sumia para escuridão. Apesar disso, se demonstrou uma gata extremamente atenciosa, e todas as manhãs, de forma ritualística, eu encontrava uma barata no chão. Morta, viva, zumbi, pela metade (e não, nunca encontrei a outra metade) pode escolher o jeito que quiser.

Se você procura na internet, vai vir uma cascata de especialistas dizendo que quando o gato traz um presente pro dono, significa que o felino o considera um péssimo caçador. Então era isso, não só eu era uma caçadora ruim, como era a pior de todas. Merecia baratas, lagartixas, morcegos, vespas (que merece um breve adendo pois foi mastigada e engolida enquanto eu pesquisava no Google quão emergencialmente eu precisava ir ao veterinário), e em seu auge: uma cigarra. Viva.

Sabe quando a cigarra está engatando no barulho e parece um motorzinho? Imagina ela tentando fazer isso, enquanto está sendo carregada entre dentes pontiagudos. Acreditei por alguns segundos que tinha um drone entrando na minha casa. Hoje penso que preferia que tivesse mesmo. Clotilde entrou com uma cigarra gigantesca na boca, ouso dizer, que a maior que já vi (talvez porque fora a única). O inseto tentava com todas as forças se salvar, e eu tentava com todas as minhas não surtar.

Já tinha passado de dez horas e o porteiro não podia me salvar. Meu leão interior clamava por coragem, mas na falta de uma estrada de tijolos amarelos, precisei usar a inteligência. Com um balde, um envelope enorme, e um Pai Nosso, consegui capturar a cigarra. Cheguei até a beira da varanda e libertei o inseto que, com um vôo psicodélico, me tremeu as bases.

Prefiro acreditar que a cigarra teve um final feliz. Não posso dizer o mesmo do envelope, que foi jogado pela varanda no susto, e do balde que hoje mora no telhado do vizinho.

O amor por gatos me fez começar esse texto e a minha mudou o rumo dele. Sem dúvidas os últimos três cinco anos me trouxeram cabelos brancos. E cada um desses fios tem um lead – 6 perguntas, todas com a mesma resposta: Clotilde. Concluo então, defendendo com muita veemência, a teoria de que só não gosta de gato quem é normal demais.

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